Vacas malhadas nas cores marrom e branco que ocupam um vasto pasto verde lembram uma embalagem de chocolate suíço. Não parece, mas essa paisagem rural é de onde sai um dos queijos mais cobiçados da França: o comté.
A agricultora Marie-Ange Roy explica que, tempos atrás, a produção de laticínio mais conhecida ficava do lado suíço do massivo de montanhas Jura, a sudeste de Paris.
“Nós ‘roubamos’ a ideia e melhoramos o processo”, brinca ela, que comanda uma fazenda nos arredores da cidade de Poligny, espécie de capital da produção do comté, a 30 km da fronteira suíça.
O queijo, vendido na região de produção por um preço que vai de € 10 a € 40 (R$ 62 a R$ 248) por quilo, é resultado de um intrincado sistema de produção que regula o que as vacas devem comer; como devem ser manejadas; e como a maturação da peça de queijo deve acontecer.
As regras ajudam a aumentar a qualidade do leite e do beneficiamento —se seguidas, esse conjunto de normas permite que o queijo ganhe o selo de denominação de origem de produção de comté, que existe desde 1958 na França.
A particularidade dessa denominação é que toda a cadeia, da produção do leite à maturação, é realizada por cooperativas de produtores. A região produz cerca de 70.300 toneladas de queijo por ano, número que é controlado pela associação local.
Para produzir o leite que dá origem ao comté é preciso que haja, no mínimo, quatro fazendas de leite envolvidas. É o caso da Gaec du Saugey, dirigida por Marie-Ange.
Para a agricultora, a denominação de origem ajuda a valorizar o preço pago por litro de leite. “Mas não podemos usar transgênicos na alimentação, e o feno precisa ser local, não pode ser comprado fora da região protegida”, diz. Como norma, produtores de leite podem ter de 30 a 50 vacas.
O número de dias que os animais devem passar no pasto durante o ano também é controlado. “Recentemente, estamos enfrentando problemas por causa do aquecimento global, porque as vacas não queriam sair do estábulo”, diz Marie-Ange.
Por causa do calor, ventiladores e até colchão de água fria especialmente desenvolvidos para ruminantes estavam à venda no salão do World Dairy Summit, maior congresso do setor, que no ano passado aconteceu na capital francesa. As mudanças climáticas também foram tema na programação de debate do evento voltado a laticínios, que mistura palestras e feira comercial.
Agricultores do Jura, por enquanto, conseguem manejar as mudanças usando esse tipo de recurso. Por isso, a sustentabilidade é uma das prioridades da produção e importante para consumidores, diz Marie-Ange.
Diariamente, segundo ela, o leite é ordenhado em sua propriedade e vai para a frutière, como é chamado o tipo de cooperativa em que se realiza o beneficiamento do queijo, etapa em que ele ganha a forma de um grande disco.
Mesmo que o leite de agricultores como Marie-Ange seja vendido para a frutière, seus produtores acompanham todas as etapas até que se transforme em queijo. Isso inclui até conferir como se dá a evolução de sua maturação. Caso, nessa etapa, se comprove que o queijo tem uma qualidade superior, o agricultor pode até ganhar uma remuneração extra.
Em uma região afastada e fria da Europa, as frutières surgiram no século 13 com a união de produtores de leite que permitia que pudessem fabricar queijos maiores, com mais durabilidade e mais fáceis de serem armazenados e comercializados –hoje, as peças variam entre 30 e 55 quilos e 50 a 70 cm de diâmetro.
Uma dessas frutières é a Les Délices du Plateau, onde trabalham mestres-queijeiros que acompanham o cozimento da massa a 56ºC em cubas de cobre que comportam 400 litros de litros.
Antes de seguir para o local que faz a maturação, o queijo passa por um primeiro estágio de descanso na frutière em uma câmara de maturação a 12ºC, em que é escovado com sal de Guérande, produzido na região da Bretanha, na França.
A etapa final de produção do queijo, da maturação, acontece em outro tipo de estabelecimento, que, além do processo de envelhecimento, também cuida da venda e distribuição.
Um desses locais é a Mont et Terroirs, que tem cerca de 200 mil espaços individuais para envelhecer o queijo. Cada peça repousa em uma câmera fria e é virada de forma automática, com ajuda de uma máquina que também escova a casca.
Ali, trabalha a figura do affineur, o profissional especializado na maturação que ajuda a classificar o queijo de acordo com sua qualidade e suas notas sensoriais.
Os aromas e sabores evoluem à medida que o queijo é envelhecido –podem ir de mais lácteo até chocolate amargo.
Entre os graus de maturação há o comté jovem (com cerca de 6 a 8 meses), o tipo frutado (de 9 a 14 meses) e o envelhecido (de 18 a 24 meses).
O comté é um dos queijos franceses mais consumidos no país: cerca de 90% da produção fica na França. Mas as exportações cresceram 7,5% em 2023 em relação ao ano anterior, chegando a países como Alemanha, Bélgica, Holanda, EUA e Japão.
Por enquanto, o Brasil ainda não é destino do laticínio, ainda que se encontre, por aqui, queijos “tipo” comté —uma comparação que deixa de fora não só o terroir, mas também o sistema de produção baseado em cooperativas.