Em Orí, documentário de Beatriz Nascimento, a historiadora narra o anseio pelo incomensurável, o desejo de não ter vivido a experiência do cativeiro. Essa dimensão do irreparável, do que não pode mais retornar, é um dos primeiros limites anunciados nos debates sobre políticas de reparação dos legados da escravidão. É como se a distância cronológica deste passado não permitisse que nós, enquanto sociedade, pudéssemos refazer, reconectar (ou reparar) a multitude de dores e violências da expansão colonial.
Se o irreparável aparece, portanto, como uma limitação intransponível – para Beatriz Nascimento, esse desejo é uma abertura para compreensão sensível dos tempos que nos habitam. O desenraizamento, a ruptura e o sequestro de pessoas africanas de suas terras, culturas e línguas, é tanto um processo histórico (da ordem cronológica) quanto incorporado (da ordem das sensibilidades circulares). Beatriz fala do desejo de experimentar no corpo o reencontro dessas temporalidades. Para ela, a inteligência dos rituais das religiões de matriz africana reside em fazer da linguagem do transe uma linguagem da memória capaz de rearticular uma cabeça consigo mesma, com a sua origem e com o seu futuro.
“Como se o corpo fosse o documento. Não é a toa que a dança para o negro é um momento de libertação. O homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto, que ele não é mais um cativo” (trecho de Orí, de Beatriz Nascimento).
A integralidade de ser um sujeito, para além da ruptura da violência racial, é reconfigurada na transtemporalidade das tradições de matriz africana e no êxtase da musicalidade e da dança. Só assim é possível “esquecer no gesto o cativeiro”, ao se encurvar sobre si mesmo, e nessa curva desencobrir passados incorporados. Essa é a dimensão mais subjetiva e sensível de reparação e sem ela não é possível desfazer o mau encontro colonial.
Candomblés, umbandas, irmandades, reisados e tantos ritos e festejos que têm a força de colocar o tempo em curva, dobrado sobre si, desfazem a ilusão de que o ontem passou. Nosso passado respira em nós: na herança majestosa de culturas milenares e nos legados perversos da fissura colonial. Nessas invenções, muitas delas lideradas por mulheres negras, é possível encontrar os sentidos mais profundos do que é memória e reparação.
Em 25 novembro será realizada em Brasília a 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras por Reparação e Bem-Viver. Esse movimento político é também um chamado de experimentação de liberdade. Ao enunciar como projeto a invenção ameríndia do bem-viver, a marcha mobiliza a intimidade da experiência da liberdade, como exercício de desfazimento do cativeiro (e também da dominação) em um gesto público e coletivo.
Por toda diáspora, a liderança e a imaginação rebelde negra e feminina foi e ainda é fundamento a partir do qual é possível parir outros mundos e experimentar gestos de liberdade. Esse ano o movimento de mulheres negras tem um chamado à sociedade brasileira. O atual projeto que temos de sociedade está arruinado. As mulheres negras apontam um caminho, uma curva do Tempo, para que nessa encruzilhada nosso país possa renascer em um novo amanhã. Levanta e marcha!
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Tássia Mendonça foi “Egbé Iyá Nassô”, do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Padre Miguel
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