Comer no Clink, restaurante de cozinha britânica contemporânea em Londres, é uma experiência offline. Nada a ver com placas de “não temos wi-fi, conversem entre si”, tampouco com a falta de potencial instagramável de pratos como a truta curada com picles de beterraba, maçã e creme fresco.
Entrar no Clink com o celular é, literalmente, crime. O restaurante fica localizado no interior de um complexo prisional masculino em Brixton, bairro no sul da capital inglesa, com capacidade para abrigar até 798 pessoas. Os cozinheiros, garçons e bartenders que atendem o salão com capacidade para 120 clientes são detentos.
A iniciativa faz parte da Clink Charity, entidade filantrópica que treina presos para reintegração social desde 2009. O restaurante de Londres, localizado no que já foi uma das áreas mais violentas da cidade, abriu em 2014.
O projeto venceu em 2015 o prêmio de melhor restaurante ético do Observer Food Monthly, do jornal The Guardian, e em 2022 recebeu o Travellers Choice Awards, do TripAdvisor.
O veto ao celular não é a única diferença do Clink para um restaurante de alto padrão qualquer. A casa só trabalha com reservas, que precisam passar por aprovação de segurança. O cliente em potencial precisa responder, por exemplo, se já esteve preso ou se conhece alguém que esteja cumprindo pena na HMP Brixon (His Majesty’s Prison Brixton, ou “prisão de sua majestade Brixton”).
Na tarde de dezembro em que a Folha visitou o Clink, cerca de 30 pessoas preenchiam as mesas do ambiente decorado com retratos de personagens históricos como Nelson Mandela e Malcolm X.
A maioria dos grupos era composta por colegas de trabalho em confraternizações de fim de ano. Traziam nas cabeças as coloridas coroinhas de papel que são tradição no Natal britânico e brindavam com drinques e cervejas sem álcool —o Clink, por motivos óbvios, é um restaurante sóbrio.
Para chegar até ali, eles passaram por um processo de segurança que começa quase uma hora antes e envolve detector de metais e revista corporal. As instruções recebidas por email depois da confirmação de reserva são claras: chegue com pelo menos 30 minutos de antecedência, ou poderá perder sua reserva.
Na chegada, os clientes devem deixar um documento com foto em troca de uma chave para guardar celulares, smartwatches, computadores e qualquer outro tipo de eletrônico em um pequeno armário. Só é permitida a entrada com um cartão de crédito, sem dinheiro em espécie.
Com a temperatura externa com apenas um dígito, foi fácil que todos os presentes cumprissem o dress code: nada de sapatos abertos, como sandálias ou chinelos.
“No verão, temos estes aqui para as pessoas usarem quando esquecem”, explica uma funcionária, apontando para uma prateleira de crocs azuis-marinhos. “Antigamente, eram umas botinas de prisão, mas era muito desconfortável.”
E nem pensar em chegar atrasado para o date ou o almoço com amigos, já que a entrada é feita em blocos por horário.
Talheres de plástico
Se o processo de chegada torna evidente que o Clink não é um restaurante comum, uma vez dentro as diferenças estão nos detalhes —como os garfos e facas de plástico, e a equipe de garçons totalmente masculina e com predileção por tatuagens no pescoço.
Garçons, estes, que entregam um serviço ágil e simpático. Jimmy (nome fictício), 37, trabalha no Clink há pouco mais de um ano. Antes de ser preso, o londrino trabalhava com construção civil, mas passou os últimos sete anos e meio entre idas e vindas na cadeia.
“Em alguns lugares que eu estive, o trabalho não tem um propósito de treinamento, aqui eles te dão um suporte quando você sai”, afirma ele, que espera ser liberado no começo de 2025.
Os detentos que passam pelo Clink, tanto em Brixton quanto em outras unidades localizadas em Cardiff, no País de Gales, e na prisão feminina de Styal, no interior da Inglaterra, saem com um certificado de treinamento em serviços.
Além disso, a organização oferece apoio para elaboração de currículo e também mantém contato com restaurantes para ajudar os ex-detentos a se recolocarem no mercado de trabalho. Em Brixton, há fila de espera para trabalhar no restaurante, e os detentos são selecionados com algumas restrições —quem cumpre pena por crimes violentos, ou com situações de refém, por exemplo, não é elegível.
Mas, para além do aspecto social, o Clink oferece boa comida. “As pessoas vêm aqui sem expectativas, talvez esperando uma cantina de prisão”, diz a gerente e treinadora Ana Camara. Ao contrário, o que se encontra é um menu moderno e bem executado.
O menu varia ao longo dos meses. Em dezembro, as opções de entrada incluíam a truta curada com maçã e beterraba, rilette (carne confitada e desfiada) de pato com chutney de ameixas e agrião, e uma tartelete vegetariana de abóbora com pignoli e cebola confitada, com preços entre 10 e 12 libras (R$ 71 a R$ 85).
Os pratos principais seguiam a tradição natalina inglesa dos assados, com opções de peru com recheio de castanha e molho de cranberry, lombo bovino com Yorkshire pudding (uma espécie de bolinho de farinha, ovo e leite) e molho de raiz-forte, e pescada branca com feijão branco, repolho negro e ameijôas, além de uma opção vegetariana de cogumelo recheado com repolho e pangrattato (farinha de rosca) de limão.
Os preços variam de 20 a 24 libras (R$ 143 a R$ 173). Altos na conversão em reais, os valores são até módicos para o padrão da cena gastronômica londrina.
Para a sobremesa, o garçom Jimmy aconselha o “bolo de Natal”, feito com especiarias e frutas desidratadas, acompanhado de creme inglês e coulis de frutas vermelhas, a 10 libras (R$ 71).
O maior sucesso entre os egressos do Clink é o chef Nathan Mortley. Depois de passar dois anos e meio na prisão de Brixton, trabalhando no restaurante, ele hoje é o responsável pelo menu do pub Greyhound, em Peckham, também no sul londrino. No cardápio, versões contemporâneas de clássicos caribenhos, como o frango jerk.
E os dados mostram bons resultados de ressocialização. Em 2023, o Clink treinou 830 detentos e conseguiu reinserir no mercado de trabalho 52% dos 180 ex-funcionários que terminaram de cumprir pena. Além disso, dados do governo britânico apontam que presos que passaram pela entidade tem uma taxa de retorno ao crime de 17%, contra 29% da população carcerária geral.
The Clink
Reservas em theclinkcharity.org