Não sei o que é pior: o uso abusivo de palavras em inglês ou a tradução macarrônica de um desses termos para o nosso português tão maltratado. Pois peço desculpas a meu colega nesta Folha Sérgio Rodrigues e confesso: sou culpada em ambos os crimes quando o assunto é a drinkability ou, na minha tradução livre, a “bebebilidade” do vinho.
Sim, são palavras horrorosas, eu me penitencio cada vez que as pronuncio, mas o faço porque traduzem uma característica hoje indispensável à bebida de forma mais precisa que o genérico “fácil de beber”, que me parece ser apenas o contrário de um vinho “difícil”, algo que não sei exatamente o que é. É vinho ruim? Teria a ver com a complexidade de cada vinho?
Essa outra característica é uma das mais apaixonantes, embora exija a atenção do bebedor. Os vinhos complexos costumam trazer notas aromáticas e gustativas mais misteriosas e incomuns, além de evoluírem na taça de forma surpreendente. Nos levam a descobrir uma infinidade de aspectos sensoriais, histórias e especificidades em uma única garrafa. Mas são caros e, a meu ver, têm seu momento e lugar, não são vinhos cotidianos e, acima de tudo, pedem tempo. A bebebilidade me parece o oposto disso: é o que bebemos mais rápido, de forma descompromissada e até em volume porque desce bem — aí está a chave.
A conceituada sommelière Pascaline Lepeltier, eleita a melhor da França em 2018, explica melhor o conceito de drinkability em seu recém-lançado “A Thousand Vines: A new way to understand wine” (Mil Vinhas: Um novo jeito de entender vinho, em português). Ela lembra que o vinho é feito para ser examinado, cheirado e provado, mas também bebido. E fala do sistema digestivo como um sexto sentido, embora sua atividade sensorial seja mais “inconsciente”. A drinkability, então, diz respeito não só à facilidade com que o vinho é sorvido, mas como ele é também digerido.
Continuando seu raciocínio, quando provamos um vinho devemos prestar atenção nele, em suas características, mas em nós também, em como reagimos a ele. Se um vinho é perfeito visual, olfativa e gustativamente, mas cai mal no estômago, como deve ser julgado? Ela sugere que repensemos a nossa abordagem e critérios na degustação e avaliação de um vinho.
No ano passado, participei de uma das muitas provas realizadas pelos colegas jornalistas e autores do “Guia dos Vinhos”. Lembro de um rótulo que era todo correto mas pouco agradável, apostei em suas notas de indigestão. Durante a avaliação alguém perguntou: com o que vai bem? E outro sugeriu morcilla. Ao que um terceiro exclamou “Coitada da morcilla!”. E coitados de nós, que não merecemos aquele vinho, com tão baixa bebebilidade.
Não sei se é obra da tal podridão cerebral e estamos mais preguiçosos, ou se tem a ver com um escapismo nessa temporada apocalíptica, mas quem bebe vinho tem buscado mais e mais a bebebilidade. Faça o teste e pergunte a si mesmo: prefere desvendar mistérios ou se servir rapidamente de uma dose de prazer sem que pese na barriga?
Estamos até atrasados, se pensarmos na turma da cerveja, que descobriu e abraçou essa característica há mais de dez anos e, sem vergonha, adotou o termo em inglês, avaliando sempre a drinkability do que prova.
Voltando ao drama linguístico, os franceses, quando um vinho segue o estilo “bom de beber de balde”, com fruta, acidez, leveza, pouco álcool e sem notas de barrica, o chamam de “glou-glou”. Aqui no Brasil, infelizmente, o simpático adjetivo me parece impossível de ser adaptado pois me parece ter sido abduzido pela cultura popular dos anos 1980: quem ouviu Sérgio Mallandro cantar “Vem Fazer Glu-glu” não é capaz de esquecer.
Vai uma taça?
O branco português biodinâmico Covela Alvarinho (R$ 142 na Toque de Vinho), que vem da região dos Vinhos Verdes, é cítrico e tem alto potencial de salivação. O rosado e também biodinâmico francês Soif (R$ 143 na Peso da Régua), é floral e traz notas ácidas de morango e delicadas de pêra. Para gastar menos e ser feliz com um tinto tradicional e orgânico, o Alto Las Hormigas Clásico (R$ 86 na World Wine) é uma escolha certeira.
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