Como a maioria dos brasileiros, Roney Ferrer Lima Carneiro gasta uma parte do dia entretido na tela do celular.
Logo depois de acordar, no ônibus a caminho do trabalho, no intervalo do expediente, quando chega em casa no fim da tarde.
Mas se engana quem pensa que ele está checando emails, batendo papo ou rolando o feed do Instagram ou do Facebook.
“Às vezes eu tô deitado e minha esposa fala: ‘Roney, sai desse celular!’ Ela acha que eu tô conversando no WhatsApp, eu tô pesquisando preço nos aplicativos.”
O cearense é um poupador convicto, e o telefone é uma das ferramentas que ele usa em uma cruzada diária para economizar. É visitante assíduo dos aplicativos de seis supermercados em Fortaleza e recebe panfletos de sete pelo WhatsApp, onde também é membro ativo de um grupo com 406 pessoas que compartilha dicas de descontos, o “Oferta do Dia”.
Roney também é curador de promoções. Marca o que considera as melhores oportunidades nos folhetos digitais e encaminha para os grupos de familiares e amigos, hábito que lhe rendeu a alcunha de “rei dos encartes” no TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Ceará, onde trabalha desde 2009.
“Quando o pessoal compra o que eu apontei que está valendo a pena eu sinto uma satisfação muito grande”, ele conta, em entrevista à BBC News Brasil.
E nem precisa ser alguém conhecido. Outro dia, ele estava no corredor de produtos de higiene pessoal no supermercado e reparou que um homem segurava um xampu de R$ 32 que ele tinha visto em oferta em outra rede. Não pensou duas vezes: “Eu disse: ‘Amigo, deixa eu te falar, sabe quanto é que tá isso daí lá no atacarejo agora? R$ 17,99’. A pessoa largou e foi comprar na saída.”
O talento para barganha fez com que, em 2022, ele passasse a economizar também profissionalmente: virou chefe da seção de análise e pesquisa de preços do TRE do Ceará, área responsável pelas cotações de preços que vão balizar as licitações para compras de produtos pelo tribunal.
Com o aumento dos preços de alimentos e de itens básicos do dia a dia doméstico no último ano, ele tem recebido cada vez mais pedidos de “encomendas” —no momento, tem a missão de garimpar desodorante e mostarda com bom custo-benefício— e de dicas para driblar os preços altos.
Recentemente, encontrou um pacote de 250g de café por R$ 9,99. Um achado.
O azeite extra-virgem que geralmente compra por R$ 50 apareceu por R$ 38. Levou quatro para ele e dois para colegas do trabalho.
“Fiz uma economia de R$ 12 por frasco. Se eu uso um por mês, em quatro meses aquilo me poupou quase R$ 100 —já paga metade do futebol do meu filho.”
Essa mentalidade, em sua visão, é o que lhe permite sustentar o padrão de vida da família —ele, a esposa e os dois filhos— e repor o que a inflação come do salário, que, segundo ele, tem reajustes esporádicos que não acompanham a escalada de preços.
O aumento do custo de vida tem provocado uma série de mudanças nos hábitos dos brasileiros, que em alguns casos têm substituído marcas que estão acostumados a consumir por outras mais baratas ou trocado o almoço fora no trabalho pela marmita.
Um levantamento feito pela empresa de vales refeição e alimentação Valecard com sua base de clientes mostrou que os gastos em supermercado cresceram 55% entre os portadores dos tíquetes e 113% em mercearias. Na contramão, as despesas dos cartões com restaurantes caíram 29% e em lanchonetes, 18%, diz Virgílio Mundim Costa, gerente de marketing.
Assim, cada vez mais gente está atenta aos preços em busca de economia —em todas as classes sociais.
“A classe A e B perdeu a vergonha de comprar pelo melhor preço”, comenta Luciana Medeiros, sócia e líder do setor de varejo na consultoria e auditoria PwC.
Isso explica porque as redes de atacarejo estão abrindo lojas em áreas mais centrais de muitas capitais e passando a oferecer serviços e produtos de maior valor agregado, como vinhos, ela exemplifica.
Entre as classes C, D e E, um processo recente de educação financeira trouxe mais controle sobre o orçamento e sofisticação na pesquisa de preços. 81% dos consumidores desse grupo fazem suas compras em lojas físicas, mas muitos deles comparam os preços online antes de sair de casa e mesmo dentro do supermercado, diz Medeiros.
A paulistana Isabel Rosana Bueno faz uma ronda diária nos aplicativos dos supermercados que estão na sua rota de deslocamento para o trabalho, onde trabalha meio expediente, entre 6h e 10h, fazendo limpeza de escritórios, no caminho para a ONG onde atua como voluntária três vezes por semana e no trajeto para a igreja.
Como Roney, é uma espécie de evangelizadora da economia: “Quando vejo uma coisa com um preço bom eu mando para todos os grupos, o da igreja, o da ONG, da família, coloco no status do WhatsApp.”
Na loja, anda com a calculadora do celular aberta para garantir na ponta do lápis que as promoções para pagar menos levando mais de uma unidade estão valendo a pena.
Também faz questão de mostrar na tela do aparelho o encarte de promoções para o gerente quando um concorrente está oferecendo preço melhor —e aproveita para cobrar o desconto quando a rede segue a política do “cobrimos qualquer oferta”.
“O consumidor brasileiro de todas as classes sociais vai para a loja com o celular na mão”, ressalta Medeiros.
Em uma pesquisa global da PwC realizada em 2023, 51% dos entrevistados no Brasil disseram usar o smartphone enquanto andavam pelos corredores para comparar produtos, contra 36% na média dos 25 países incluídos no levantamento.
“O brasileiro muitas vezes está na loja e compra online, compra no físico e manda entregar em casa, compra no online e vai trocar no físico”, ilustra Medeiros.
‘É COMO SE EU ESTIVESSE JOGANDO VIDEOGAME E O VILÃO FOSSE O PREÇO ALTO’
Genésio Vasconcelos é um deles. Anda pelo supermercado com o celular na mão e três ou quatro aplicativos abertos —de um marketplace, uma farmácia, de outro supermercado e um de cashback, por exemplo.
Encontrou algo mais barato da lista de compras no digital, ele vai colocando no carrinho.
“Às vezes eu saio do supermercado feito no atacadista, e mais três ou quatro pedidos feitos em outros locais, que ou eu vou passar para recolher ou que vão entregar na minha casa”, diz o cearense, que é educador financeiro e autor de um dos capítulos do livro “Adeus, Dívidas”.
Outro hábito que faz parte da rotina de economia dele é maximizar as ofertas comprando o maior número de itens possível do mesmo produto entre os não perecíveis —higiene pessoal e material de limpeza.
Fazer estoques na despensa, aliás, está na lista de estratégias de praticamente todos os “ninjas” das pechinchas que conversaram com a reportagem.
Isso também evita as compras de última hora —e a preços mais altos— desses produtos nas visitas às redes menores que muitos deles fazem nos dias específicos de promoções para comprar itens de consumo mais imediato, como frutas, legumes e verduras.
Nesse sentido, Vasconcelos diz que o segredo é resistir à tentação das compras por impulso, inclusive as promoções, ser organizado e se programar.
“Eu já comprei sabonete para um ano inteiro quando peguei uma mega promoção.”
Qual a sensação de economizar? “Para mim é como se eu estivesse jogando videogame”, ele compara.
“Eu estou ali, um adolescente de 12 anos encarando uma fase de videogame, e aí eu consigo vencer o vilão. O vilão é o preço alto. Ele veio para cima de mim, eu fui para outro canto e consegui escapar”, ele completa, dando risada.
‘ABRO APP DE SUPERMERCADO ASSIM QUE ACORDO’
Agleison Costa Castro é outro adepto convicto da prática do estoque de descontos. Chegou a comprar 80 quilos de arroz recentemente. Ficou com 15 quilos em casa, onde mora com os pais e outros familiares, e vendeu o restante para vizinhos e parentes.
Ele é administrador do “Desconto? É pra já”, um grupo fechado no WhatsApp que reúne 104 pessoas que compartilham mega descontos em aplicativos de entrega de supermercado, como iFood e Rappi.
Castro trabalha como consultor técnico em uma oficina de serviços automotivos em Fortaleza e é uma daquelas pessoas que guardam o preço de absolutamente tudo na memória.
Na conversa com a reportagem, ele foi do sabão em pó e da margarina ao filé mignon e ao peito de frango, disparando os preços médios no varejo da capital cearense em contraste com o que pagou pelos aplicativos, com descontos de até 80%.
Ele sempre foi poupador, mas com o smartphone caçar as ofertas virou uma mania. “É um hobby, é um vício”, ele diz à BBC News Brasil.
Castro checa o celular em busca de promoções pelo menos cinco vezes por dia: quando acorda, depois às 9h —quando costumam aparecer os “bugs dos preços” nos apps de entrega, como dizem os participantes do grupo—, na hora do almoço e à noite, depois de chegar do trabalho.
“Eu deito para relaxar e fico olhando se tem mais alguma coisa em oferta.”
UNIDOS PELO DESCONTO
O grupo que Castro administra surgiu em 2021, durante a pandemia, época em que muitos brasileiros passaram a usar cada vez mais a internet e as redes sociais como ferramenta para buscar ofertas.
Hoje, ele é um entre milhares que compartilham dicas de descontos de alimentos e itens domésticos a roupas, perfumes e eletrodomésticos.
A pedido da reportagem da BBC News Brasil, a plataforma de escuta social Palver, que monitora mais de 75 mil grupos públicos no WhatsApp, além de outras redes sociais, mapeou pelo menos 1.375 grupos abertos de desconto no WhatsApp e outros 231 no Telegram, identificados por meio de palavras-chave derivadas de “descontos”, “economizar” e “ofertas”.
Segundo Lucas Cividanes, da área de inteligência e análise da Palver, os principais grupos compartilham diariamente mais de 30 mensagens com descontos. Entre as comunidades mais ativas estão nomes como “Achadinhos da Shopee”, “Achei Barato” e “Promos Arrase”.
Dentro da amostra, o volume atinge um nível de cerca de 400 mensagens a cada 100 mil no WhatsApp e de 100 a cada 100 mil no Telegram, “taxa próxima à de personalidades políticas de peso como o Presidente Lula e o ex-presidente Bolsonaro”, diz ele.
Geograficamente, as áreas com maior incidência de trocas de mensagens são a região metropolitana de Fortaleza e o norte do estado do Espírito Santo.
VALE A PENTA TANTO ESFORÇO?
Mas será que a dedicação para poupar dá resultado?
Vasconcelos diz que depende. Para o consultor financeiro, quando a economia é de centavos, geralmente não compensa o tempo perdido para garantir o desconto.
“A gente tem que olhar nossa vida econômica de forma macro, senão você fica ali economizando centavos, mas gasta tempo —e tempo é dinheiro.”
“Senão você vira escravo do centavo”, ele acrescenta. “Tal qual o escravo da dívida tem o escravo da economia.”
A paulistana Edilene Vieira tem uma filosofia parecida.
Poupadora convicta, ela visita o Ceasa para comprar frutas e legumes a cada 15 dias na hora da xepa, monitora os aplicativos de cinco supermercados em busca de ofertas —compartilha as melhores com os amigos e familiares— e faz estoque de boas promoções
“Não estou sofrendo tanto com o café porque eu tinha ainda um monte no estoque”, conta.
Para ela, economizar é uma forma de dar valor ao que se ganha com o trabalho, mas também uma ferramenta pra realizar sonhos de consumo.
Graças a esse hábito –que cultiva há décadas e que passou à filha, outra poupadora contumaz— ela recentemente se “deu ao luxo” de alugar por dois anos e meio uma casa no litoral de São Paulo.
Aposentada do setor em que atuou por 35 anos, hoje tem um trabalho de meio período —que faz metade da semana da cidade e metade, da praia.
Texto originalmente publicado aqui.