Planejar a sucessão patrimonial sempre foi um exercício de estratégia e cautela. No entanto, a recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), no julgamento do REsp 2.139.412/MT, impôs um novo e preocupante paradigma: a tributação sobre a transmissão causa mortis de quotas sociais de empresas com imóveis integralizados ao capital social deverá considerar o valor de mercado dos bens, e não apenas o valor patrimonial contábil das quotas. A mensagem é clara: a realidade econômica dos ativos prevalece sobre as formalidades contábeis, e o ITCMD deve ser calculado com base no valor de mercado dos bens transmitidos.
O caso teve origem na transmissão de quotas sociais de uma empresa cujos principais ativos eram imóveis. Os herdeiros argumentavam que a base de cálculo do ITCMD deveria ser o valor patrimonial líquido da sociedade, refletindo sua contabilidade. O fisco, por sua vez, defendeu que a base de cálculo deveria corresponder ao valor de mercado dos imóveis integralizados ao capital social da empresa, invocando os artigos 38 e 148 do CTN (Código Tributário Nacional).
O TJMT (Tribunal de Justiça de Mato Grosso) chegou a decidir a favor dos herdeiros, entendendo que a tributação deveria seguir exclusivamente o valor patrimonial das quotas. No entanto, o STJ reformou essa decisão, estabelecendo que a base de cálculo do ITCMD deve corresponder ao valor venal dos bens transmitidos, ou seja, o preço de mercado dos imóveis integralizados ao capital da sociedade.
A decisão do STJ é um recado claro contra estruturas societárias criadas para minimizar a tributação sucessória. A ideia de que imóveis podem ser integralizados ao capital social de uma empresa e, posteriormente, transmitidos por meio da herança sem que seu valor real seja considerado na tributação, foi, na prática, desmontada.
Não se trata apenas de uma questão técnica, mas de um enfrentamento direto entre a forma e a substância. O STJ reafirma que a transmissão de patrimônio deve ser tributada com base no seu valor real, e não em artifícios contábeis que visam reduzir a carga fiscal.
O efeito imediato desse precedente é a insegurança jurídica para contribuintes que utilizaram essa estratégia nos últimos anos. Com essa interpretação consolidada pelo STJ, é previsível que os fiscos estaduais intensifiquem a revisão de declarações do ITCMD, podendo gerar autuações e cobranças retroativas.
O primeiro grande equívoco da decisão está em ignorar o princípio fundamental da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Se uma sociedade integraliza um imóvel a valor contábil, esse valor reflete a realidade da empresa e impacta diretamente o valor de suas quotas. No momento da sucessão, o que se transmite aos herdeiros são essas quotas —não os bens subjacentes que pertencem à sociedade.
Ao desconsiderar essa distinção elementar, o STJ cria uma aberração jurídica: o herdeiro, que recebe quotas sociais, passa a ser tributado como se estivesse recebendo imóveis diretamente. Se essa lógica for levada ao extremo, deveremos tributar acionistas de uma S.A. pelo valor de mercado dos ativos da empresa quando venderem suas ações? O raciocínio contraria a lógica societária e patrimonial amplamente consolidada.
Outro problema grave é a ampliação do poder discricionário da Receita Estadual para questionar valores declarados pelo contribuinte. O artigo 148 do CTN, usado como justificativa para o arbitramento do valor dos imóveis, prevê que o Fisco pode corrigir valores apenas quando houver incompatibilidade evidente entre o preço declarado e os valores de mercado.
Ocorre que, ao contrário do que sugere o STJ, não há qualquer incompatibilidade em tributar quotas sociais com base no valor contábil da empresa. O valor patrimonial da sociedade já considera os bens, direitos e obrigações da empresa, conforme determinado pelas normas contábeis.
Ao permitir que o fisco ignore essa estrutura sempre que for conveniente, a decisão abre um precedente perigoso: hoje são os imóveis, amanhã poderão ser quaisquer outros ativos. O resultado? Autuações arbitrárias e litígios tributários intermináveis, nos quais o contribuinte terá que provar que seguiu regras que, até então, eram aceitas pelo próprio ordenamento jurídico.
A decisão do STJ também deve ser analisada à luz da iminente reforma tributária, que já sinaliza um endurecimento sobre o planejamento patrimonial. Há propostas para harmonizar as alíquotas do ITCMD entre os estados, eliminar incentivos fiscais regionais e ampliar a fiscalização sobre heranças e doações —especialmente quando envolvem bens no exterior.
O problema não está na tributação em si, mas na forma como ela é imposta. Alterações estruturais deveriam ser feitas por meio de lei, não por decisões judiciais casuísticas. Ao antecipar a aplicação de um critério mais oneroso sem qualquer mudança legislativa formal, o STJ reforça a percepção de que a Justiça brasileira tem assumido um papel que não lhe compete: o de legislador tributário.
O Brasil, assim, caminha na contramão das melhores práticas internacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a sucessão de participações societárias não sofre tributação sobre o valor de mercado dos ativos subjacentes, mas sim sobre o valuation da empresa como um todo. Na União Europeia, regimes como os da Alemanha e da França também reconhecem o valor patrimonial contábil como base de cálculo do imposto sobre heranças e doações, evitando que o fisco desconsidere estruturas societárias formalmente estabelecidas.
A decisão do STJ não inviabiliza o planejamento patrimonial, mas exige estratégias mais sofisticadas e juridicamente sustentáveis. Alternativas como a doação de quotas com reserva de usufruto ou o uso de holdings familiares ainda possuem espaço, mas precisarão ser cuidadosamente estruturadas para evitar questionamentos fiscais.
Esse caso serve como um lembrete incômodo de que, no Brasil, a engenharia tributária deve ser conduzida com um olho na letra da lei e outro na jurisprudência. Sob pena de, como os herdeiros do caso em questão, ver a conta chegar mais alta do que o esperado. O mercado foi alertado. Resta saber quem se adaptará e quem será pego de surpresa nas próximas autuações.