As dezenas de cortes listados nos manuais da cozinha clássica francesa —há mais de 50 formas diferentes de picar, tornear, fatiar ou produzir tirinhas e bastões– não são apenas preciosismo de uma escola culinária devotada à beleza. “O corte faz diferença para o resultado do preparo”, diz Paula Rizkallah, formada pela Le Cordon Bleu e fundadora da escola Atelier Gourmand.
Se mais superfícies do alimento são expostas pelo corte, maior será a liberação de moléculas de sabor e aroma. Na prática, um ingrediente mais picado se faz mais presente. “Uma sopa de legumes picadinhos fica mais gostosa do que se colocarmos vegetais inteiros”, Rizkallah exemplifica.
Charles Spence, pesquisador do departamento de psicologia experimental da Universidade de Oxford, conduziu estudos que comprovam que o formato do alimento também muda a maneira como ele é percebido.
Formas ásperas ou pontudas, de acordo com ele, tendem a ser associadas a sabores ácidos ou amargos, enquanto somos inclinados a perceber os alimentos de contornos arredondados como mais doces e suaves.
“A teoria de Spence fica mais evidente em testes às cegas, mas o cliente do restaurante, que sabe o que está provando, dificilmente identifica essa relação entre forma e sabor”, afirma Pedro Drudi, coordenador de cursos da escola Le Cordon Bleu de São Paulo.
No dia a dia, as receitas culinárias definem como os itens devem ser cortados porque cada ingrediente tem uma intensidade de sabor, uma textura e um nível de picância.
Até no receituário brasileiro, que nunca foi tão detalhista quanto o francês, o tamanho dos cortes costuma ser indicado. Se o autor da receita pede para “picar bem miudinho” ou “cortar grosseiramente”, tem seus motivos, nem que seja gosto pessoal.
Livros de técnicas culinárias, como “Chef Profissional” (Ed. Senac), “400 g” (Cia. Editora Nacional) e “Le Cordon Bleu Complete Cooking Techniques” (Cassel), ensinam cada corte, mas não explicam de que maneira eles influenciam a percepção dos ingredientes e o resultado final das receitas.
Para elucidar a questão, a Folha procurou professores de escolas de gastronomia em busca das explicações.
Cebola
Segundo Pedro Drudi, ao ser cortada, a cebola libera seus sucos e, junto com eles, o composto de cheiro forte que faz chorar —quanto mais picada, mais desse sabor vai para a receita.
“Em cozimentos longos, a cebola cortada em cubos grandes libera o sabor aos poucos. Em contrapartida, alguns pratos asiáticos de preparo rápido, na wok, pedem cebola em pétalas, para que libere só um pouco dos aromas durante o salteado, mantendo a textura.”
O corte também faz diferença nos preparos crus, como vinagrete. De acordo com Wesley Peixoto, chef executivo do Eataly Brasil, a cebola bem picadinha adiciona mais pungência e acidez ao molho e favorece a troca de sabores entre os ingredientes.
“Pedaços maiores suavizam o molho, pois a liberação de compostos aromáticos é lenta, mas comprometem a homogeneidade, já que se sente separadamente o gosto forte da cebola.”
Alho
Quando muito picado, também libera um componente bastante aromático e de sabor ardido. Na gastronomia italiana, explica Wesley Peixoto, que tem o alho como um dos seus pilares, os dentes entram de diferentes formas. Uma das técnicas é descascar e amassar ligeiramente. “As rachaduras soltam os aromas de maneira mais suave”, ensina.
Na massa ao alho e óleo, ele sugere evitar o picado miúdo, que resulta em mais amargor. “A gente fatia em lâminas finas, que liberam sabor de forma intensa, mas não tanto quanto o alho picadinho.”
Tomate
Há pelo menos oito formas diferentes de cortar um tomate, segundo as regras francesas – quanto mais miúdo, mais compostos aromáticos são liberados.
É preciso compreender a anatomia do fruto. Segundo Paula Rizkallah, o dulçor está próximo à casca, enquanto a parte interna, onde ficam as sementes e o filamento esbranquiçado que as sustenta, ganha em acidez.
“A parte próxima à casca concentra os pigmentos vermelhos. Quem quer manter a cor vermelha deve despelar o tomate, não descascar, pois a faca retira parte dos pigmentos e o preparo fica cor de laranja.”
Tirar ou não a pele faz diferença —por ser ácida, ela interfere no resultado, explica Pedro Drudi. “Eu raramente tiro, mas a cozinha profissional costuma trabalhar com tomates pelados, principalmente pela textura.”
Cheiro-verde
Ao serem cortadas sobre uma tábua branca, salsinha e cebolinha deixam a superfície verde. Isso acontece porque as duas ervas frescas desprendem uma espécie de seiva que, além de colorir, transfere sabor aos preparos.
Ter uma faca afiada, diz Camila Yazbek, professora da escola Wilma Kövesi de Cozinha, é importante para tirar partido das propriedades do cheiro-verde. “Facas sem fio amassam as folhas, fazendo com que soltem muitos líquidos e percam frescor. Melhor cortar fininho e, no caso da cebolinha, em rodelinhas.”
De acordo com Pedro Drudi, facas de metal aceleram a oxidação das folhas – os chefs, ele ensina, usam faca de cerâmica.
Pimentas vermelhas
A capsaicina, composto químico responsável pela picância, é liberada quando se corta a pimenta. Quanto mais cortada, mais ardido fica o preparo.
Como boa parte da capsaicina se concentra nas sementes e no filamento branco, removê-los atenua a potência da pimenta.
“Se o objetivo é um prato bem picante, conserve as sementes e pique tudo bem miudinho. Caso contrário, remova as sementes e corte a pimenta em pedaços maiores”, ensina Yazbek.
Pimenta-do-reino
O aroma intenso pode ser percebido nos grãos inteiros, mas eles só liberam picância quando quebrados ou moídos. “Quanto mais triturados, mais picante o preparo”, diz Yazbek.
A pimenta-do-reino finamente moída, como se compra no supermercado, é a forma mais intensa do condimento. O moinho, que tritura os grãos em partículas médias, é o passo seguinte da escala, enquanto a moagem grossa, feita em pilão, permite tirar partido dos aromas e do frescor da pimenta-do-reino com mais suavidade.